Da China a Angola as voltas que a vida dá
*Por Filipe Zau
Embora não sejam ainda conclusivos os estudos empreendidos sobre a origem dos bantu, sabe-se que os cerca de 500 povos ligados a uma civilização do mesmo nome, iniciaram, há cerca de três ou quatro mil anos, uma extraordinária migração, onde, paralelamente às guerras existentes, houve a assumpção de influências culturais exteriores ao seu modus vivendi. Espalhados, desde a orla sudanesa até ao Cabo da Boa Esperança e do Atlântico ao Índico, os bantu, apesar de não constituírem uma unidade do ponto de vista meramente antropológico, são, a norte, miscigenados com os etíopes e negrilhos e, a sul, com elementos não bantu do tipo Khoï e San.
Após a racialização do discurso levado a cabo por europeus, como forma de justificação do hediondo tráfico oficial e clandestino de escravos, surgiu, mais tarde, pelas correntes do pan-africanismo e da negritude, a inversão do discurso da “raça”. Em causa estava a necessidade de afirmação e elevação da baixa auto-estima de negros sujeitos à colonização e à servidão escravocrata em África, na Europa e no Novo Mundo. Apesar do discurso directo e invertido da “raça” serem diametralmente opostos, ambos apresentam, no entanto, um aspecto comum: omitem o facto da essência da humanidade ser toda ela biológica e culturalmente mestiça. Talvez o facto da humanidade ter a sua origem em África, afirma-se que o general De Gaulle chegou a considerar que o futuro da humanidade seria a mestiçagem. Contudo, o sociólogo José Norberto Januário, num artigo intitulado “Da miscigenação à utopia”, a partir da sua vivência num Portugal fascista e colonialista, afirmou que “o indivíduo mestiço é geralmente fruto da ligação de pessoas provenientes de culturas diferentes, cuja interpenetração se alicerçou no predomínio duma cultura em relação à outra. “O mestiço é biologicamente pertença de dois mundos mas, socialmente, ele é relegado para o pior dos dois”.
Utilizando o método das conferências e tirando o maior partido possível da oportunidade que lhes foi proporcionada pela ONU de “todos se encontrarem com todos”, os países e povos do “Terceiro Mundo” acabaram, segundo Adriano Moreira, por forjar uma identidade, assente numa “perspectiva neutralista ou terceiromundista”. Na primeira e histórica Conferência de Bandung (Indonésia), realizada em Abril de 1954, o presidente Sukarno, anfitrião da reunião, “chamou povos mudos do mundo aos que até então tinham sido representados por um soberano colonizador, e que todos se reconheciam como povos de cor”. Posteriormente, em 1957, na Conferência do Cairo, “consideraram que era a antiga situação colonial que os unia, mesmo que não fossem povos de cor”. Ali, o presidente Nasser apelou à mobilização de todos “contra as antigas soberanias opressoras, porque todos contestavam as mesmas coisas, que todas eram ocidentais”. Na Conferência de Havana, em 1966, tendo Fidel de Castro como anfitrião, os países e povos marginalizados no sistema internacional do pós-guerra – tanto os recém independentes como os que já haviam alcançado a sua liberdade no século XIX – passaram a identificar-se como povos pobres. Responsabilizavam as ex-potências coloniais tanto pela pobreza herdada pela colonização, como ainda pela agressividade a que afirmavam continuar a estar sujeitos, devido à filosofia e à prática capitalista que os países colonizadores haviam interiorizado. “Os povos de cor, os antigos colonizados, os pobres deste mundo, começam a exercer uma política concertada, formal ou informalmente, em todas as grandes questões internacionais”.
Se, no primeiro quartel do século XIX, o grito do Ipiranga, no Brasil, constituiu motivo para um primeiro grito de autonomia no Forte de S. Filipe em Benguela, mais tarde, houve um conjunto de acontecimentos que levaram à emergência de um maior sentido independentista, à interiorização de um sentimento pan-africanista e, face ao início da Guerra Fria, à opção marxista ou capitalista para o desenvolvimento social. Neste contexto, há a destacar a vitória da Revolução de Outubro na Rússia (25 de Outubro de 1917); o 1º Congresso Pan-Africano promovido por William Du Bois (19 de Fevereiro 1919); o fim da II Guerra Mundial (1945); a Declaração Universal dos Direitos Humanos (10 de Dezembro de 1948), com a correspondente desmistificação do conceito de “raça” e a proclamação da igualdade de todo o género humano; a vitória do Partido Comunista Chinês e a tomada do poder na China, por Mao Tsé Tung (1949); o início das confrontações na Coreia, que levaram três anos mais tarde à formação da Coreia do Norte (pró-marxista) e da Coreia do Sul (pró-capitalista), em 1950; as independências da Líbia (1951), do Egipto e do Sudão (1952).
Em Angola, Viriato da Cruz, poeta e um interventor social do seu tempo, nacionalista e teórico marxista que está na origem do Partido Comunista de Angola – PCA; do Partido de Luta Unida dos Africanos de Angola – PLUAA; e do Movimento Popular de Libertação de Angola – MPLA, foi o primeiro secretário-geral deste movimento de libertação nacional. Todavia, independentemente dos acertos e desacertos da sua acção política, acabou por renunciar a este cargo devido a questões, aparentemente, relacionadas com a cor da sua pele. Da acta da reunião do Comité Director do MPLA, de 13 a 23 de Maio de 1962, citada por Jean Michel Tali no seu livro “O MPLA perante si próprio”, Viriato afirmou o seguinte: “um Comité Director formado por mulatos não poderá dar palavra de ordem que seja aceite [pelos negros] (…) a malta tem-se esquecido de que a luta de Angola é uma reivindicação do negro. É um problema justo”. Segundo a investigadora francesa Christine Messiant, Viriato era um pensador político, um homem de doutrina, de teoria. Era também politicamente um autodidacta, o que no caso significa que nunca passou por uma “escola do partido”. Não era movido por um impulso sentimental, nem por fidelidade militante ou de aparelho, mas sim por adesão à teoria que encontrou nos textos marxistas. Para ele, pelo menos, naquela fase da luta, os “mestiços” deveriam dar os lugares de direcção aos negros.
Depois de Viriato se afastar do MPLA e do seu novo líder, Agostinho Neto, de passar a militar na FNLA e de apoiar Pequim no período da querela sino-soviética, acabou por se exilar na China, em plena Revolução Cultural, onde foi apoiado pelas autoridades daquele país. Contribuiu para a criação da Organização de Escritores Afro-Asiáticos na capital da República Popular da China e foi recebido pelo próprio Mao Zedong. Discursou, na Praça de Tiananmen, perante um milhão e meio de pessoas e manifestou o seu apoio a Mao no sentido de levar a cabo uma revolução mundial a partir da China.
Até que um dia, em total contradição com o que, publicamente, havia dito antes aos chineses, afirmou ser impossível o triunfo do movimento maoista em África. Caiu, então, em desgraça, foi perdendo o estatuto especial que outrora tinha possuído e passou a sobreviver da ajuda de estrangeiros residentes na China. Acabou os seus últimos dias doente, isolado e abandonado à sua sorte, até ser enterrado de forma indigna em Pequim, em 1973. Foi, no entanto, através da acção de Viriato da Cruz, que, anos antes, o MPLA havia conseguido da China o seu primeiro apoio político-diplomático e financeiro.
Se Viriato fosse vivo, qual teria sido, hoje, o seu pensamento, ao ver, em plena era da mundialização da economia, proletários e empresas chinesas a trabalharem em prédios e estradas de uma Angola independente e pacificada, aparentemente, esquecidos das suas preocupações ideológicas de outrora (?!).
Após a racialização do discurso levado a cabo por europeus, como forma de justificação do hediondo tráfico oficial e clandestino de escravos, surgiu, mais tarde, pelas correntes do pan-africanismo e da negritude, a inversão do discurso da “raça”. Em causa estava a necessidade de afirmação e elevação da baixa auto-estima de negros sujeitos à colonização e à servidão escravocrata em África, na Europa e no Novo Mundo. Apesar do discurso directo e invertido da “raça” serem diametralmente opostos, ambos apresentam, no entanto, um aspecto comum: omitem o facto da essência da humanidade ser toda ela biológica e culturalmente mestiça. Talvez o facto da humanidade ter a sua origem em África, afirma-se que o general De Gaulle chegou a considerar que o futuro da humanidade seria a mestiçagem. Contudo, o sociólogo José Norberto Januário, num artigo intitulado “Da miscigenação à utopia”, a partir da sua vivência num Portugal fascista e colonialista, afirmou que “o indivíduo mestiço é geralmente fruto da ligação de pessoas provenientes de culturas diferentes, cuja interpenetração se alicerçou no predomínio duma cultura em relação à outra. “O mestiço é biologicamente pertença de dois mundos mas, socialmente, ele é relegado para o pior dos dois”.
Utilizando o método das conferências e tirando o maior partido possível da oportunidade que lhes foi proporcionada pela ONU de “todos se encontrarem com todos”, os países e povos do “Terceiro Mundo” acabaram, segundo Adriano Moreira, por forjar uma identidade, assente numa “perspectiva neutralista ou terceiromundista”. Na primeira e histórica Conferência de Bandung (Indonésia), realizada em Abril de 1954, o presidente Sukarno, anfitrião da reunião, “chamou povos mudos do mundo aos que até então tinham sido representados por um soberano colonizador, e que todos se reconheciam como povos de cor”. Posteriormente, em 1957, na Conferência do Cairo, “consideraram que era a antiga situação colonial que os unia, mesmo que não fossem povos de cor”. Ali, o presidente Nasser apelou à mobilização de todos “contra as antigas soberanias opressoras, porque todos contestavam as mesmas coisas, que todas eram ocidentais”. Na Conferência de Havana, em 1966, tendo Fidel de Castro como anfitrião, os países e povos marginalizados no sistema internacional do pós-guerra – tanto os recém independentes como os que já haviam alcançado a sua liberdade no século XIX – passaram a identificar-se como povos pobres. Responsabilizavam as ex-potências coloniais tanto pela pobreza herdada pela colonização, como ainda pela agressividade a que afirmavam continuar a estar sujeitos, devido à filosofia e à prática capitalista que os países colonizadores haviam interiorizado. “Os povos de cor, os antigos colonizados, os pobres deste mundo, começam a exercer uma política concertada, formal ou informalmente, em todas as grandes questões internacionais”.
Se, no primeiro quartel do século XIX, o grito do Ipiranga, no Brasil, constituiu motivo para um primeiro grito de autonomia no Forte de S. Filipe em Benguela, mais tarde, houve um conjunto de acontecimentos que levaram à emergência de um maior sentido independentista, à interiorização de um sentimento pan-africanista e, face ao início da Guerra Fria, à opção marxista ou capitalista para o desenvolvimento social. Neste contexto, há a destacar a vitória da Revolução de Outubro na Rússia (25 de Outubro de 1917); o 1º Congresso Pan-Africano promovido por William Du Bois (19 de Fevereiro 1919); o fim da II Guerra Mundial (1945); a Declaração Universal dos Direitos Humanos (10 de Dezembro de 1948), com a correspondente desmistificação do conceito de “raça” e a proclamação da igualdade de todo o género humano; a vitória do Partido Comunista Chinês e a tomada do poder na China, por Mao Tsé Tung (1949); o início das confrontações na Coreia, que levaram três anos mais tarde à formação da Coreia do Norte (pró-marxista) e da Coreia do Sul (pró-capitalista), em 1950; as independências da Líbia (1951), do Egipto e do Sudão (1952).
Em Angola, Viriato da Cruz, poeta e um interventor social do seu tempo, nacionalista e teórico marxista que está na origem do Partido Comunista de Angola – PCA; do Partido de Luta Unida dos Africanos de Angola – PLUAA; e do Movimento Popular de Libertação de Angola – MPLA, foi o primeiro secretário-geral deste movimento de libertação nacional. Todavia, independentemente dos acertos e desacertos da sua acção política, acabou por renunciar a este cargo devido a questões, aparentemente, relacionadas com a cor da sua pele. Da acta da reunião do Comité Director do MPLA, de 13 a 23 de Maio de 1962, citada por Jean Michel Tali no seu livro “O MPLA perante si próprio”, Viriato afirmou o seguinte: “um Comité Director formado por mulatos não poderá dar palavra de ordem que seja aceite [pelos negros] (…) a malta tem-se esquecido de que a luta de Angola é uma reivindicação do negro. É um problema justo”. Segundo a investigadora francesa Christine Messiant, Viriato era um pensador político, um homem de doutrina, de teoria. Era também politicamente um autodidacta, o que no caso significa que nunca passou por uma “escola do partido”. Não era movido por um impulso sentimental, nem por fidelidade militante ou de aparelho, mas sim por adesão à teoria que encontrou nos textos marxistas. Para ele, pelo menos, naquela fase da luta, os “mestiços” deveriam dar os lugares de direcção aos negros.
Depois de Viriato se afastar do MPLA e do seu novo líder, Agostinho Neto, de passar a militar na FNLA e de apoiar Pequim no período da querela sino-soviética, acabou por se exilar na China, em plena Revolução Cultural, onde foi apoiado pelas autoridades daquele país. Contribuiu para a criação da Organização de Escritores Afro-Asiáticos na capital da República Popular da China e foi recebido pelo próprio Mao Zedong. Discursou, na Praça de Tiananmen, perante um milhão e meio de pessoas e manifestou o seu apoio a Mao no sentido de levar a cabo uma revolução mundial a partir da China.
Até que um dia, em total contradição com o que, publicamente, havia dito antes aos chineses, afirmou ser impossível o triunfo do movimento maoista em África. Caiu, então, em desgraça, foi perdendo o estatuto especial que outrora tinha possuído e passou a sobreviver da ajuda de estrangeiros residentes na China. Acabou os seus últimos dias doente, isolado e abandonado à sua sorte, até ser enterrado de forma indigna em Pequim, em 1973. Foi, no entanto, através da acção de Viriato da Cruz, que, anos antes, o MPLA havia conseguido da China o seu primeiro apoio político-diplomático e financeiro.
Se Viriato fosse vivo, qual teria sido, hoje, o seu pensamento, ao ver, em plena era da mundialização da economia, proletários e empresas chinesas a trabalharem em prédios e estradas de uma Angola independente e pacificada, aparentemente, esquecidos das suas preocupações ideológicas de outrora (?!).
* Ph.D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais
Jornal de Angola
24 de Julho, 2009
24 de Julho, 2009
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